13 dezembro 2007
Mote: Sob os panos da mesa, sua mão sobre meu jeans.
ela percorreu com ligeireza o jeans vestido ao seu lado, por debaixo da toalha de piquenique. a solidez dos músculos por debaixo do pano causou-lhe uma quentura no ventre. apertou e arranhou o tecido. ele, com uma das mãos segurando um punhado de cartas em leque, abaixou a outra e agarrou-lhe os dedos irrequietos, firme e severo. seu olhar mostrava-se compenetrado na jogada do outro.
suspirou. amores confidenciais.
a mão relaxou aperto, paulatina e negligentemente.
a varanda estava aberta atrás deles. uma tímida brisa remexia as cortinas. pesadas.
o refresco estava derretendo seus cubos de gelo, num jarro de vidro. não estava tão quente, embora ela palpitasse e estremesse, com a noite escorrendo em seu dorso e o comichão flamejante irradiando inquietações pelo corpo e(s)xtático.
ela retirou com ternura seus dedos e voltou a passear sobre a perna coberta de um azul áspero. com o canto do olho viu o maxilar trincar e os fulgurantes olhos acinzentados lançarem um raio de pura censura. a perna mexeu-se, incomodada. as cartas balouçaram de maneira quase imperceptível. ela sorriu com a boca torta em um sarcasmo triunfante, levantou-se com um copo de refresco e rumou para a cozinha, em busca de mais gelo; aquela noite estava esvaziando toda a forma.
a gata estava deitada no final do cubículo, encarando-a com um misto de preguiça e indiferença. sustentando aquele olhar, a moça encostou na bancada de pedra fria (ah, a rígida frigidez a arrepiava, parecia arder em febre).
risadas na sala.
um apertão gélido arrancou-lhe de voluptuosos pensamentos. um agarrar possessivo. era ele, com a boca furiosa espremida em pequenas linhas.
ela puxou-o contra si e arrancou-lhe um beijo dos lábios comprimidos. sendo empurrada, mordeu o próprio com um ar arrogante e fitou-o.
ele deixou a cozinha, com passos duros. ela voltou a seus pensamentos, sustentando o ar desaprovador e faiscante da gata.
08 dezembro 2007
Memórias Papaguenianas
No começo, sua visita era esporádica, mas quando os mamões amadureceram, era comum vê-lo se locupletando numa fruta que era do seu tamanho. Tinha pena de retirar os mamões, principalmente pelo fato de que não mais o veria caso fizesse isso. Para retê-lo quando os mamões haviam sido consumidos por completo, passei a largar pedaços de fruta nos degraus de pedra externos, comida que passava desapercebida - ou ignorada - pela cadela que perambulava do lado de fora.
O tempo foi passando, e eu cada vez mais buscava o conforto daquele corpinho leve por perto, mesmo que no mundo do lado de lá do vidro. Criei uma bela pasta de fotos do pequeno Papagueno. Ele sempre estava lá, assim como o travesseiro para acomodar a minha cabeça pesada de pensamentos.
Então, houve um dia. Ergui minha vista da tela e afastei minha mão do teclado negro, procurando pelo Pequeno. Varri o jardim minuciosamente, mas nada do corpo cinza de verde-besouro, nem dos inteligentes carrapatos lustrosos. Baixei novamente meus olhos para a tela, mas a inquietação começou a me cutucar impiedosamente, e eu tornei a examinar através da vidraçaiada. Ele não estava lá. Olhei para os degraus pétreos e a banana continuava ali. Levantei-me e atravessei a fronteira entre os dois mundos. Andando por entre as folhas mortas encontrei algumas penas rajadas do tão conhecido verde furta-cor. Aquelas pequenas amostras de Papagueno laceraram minha espectativa. Peguei-as com cuidado e pesar. Em seguida fiz uma pesquisa em profundidade, encontrando algumas outras próximas ao muro, untadas de um líquido escuro já seco e ligeiramente oleoso.
Por mais que caçasse os demais restos do pequeno Papagueno, nada mais vi, exceto os olhos gulosos do gato vizinho espreitando faiscantes por cima do muro. Raivosa, observei o ar petulante do gato, tão comumente mau humorado.
Matar o gato não podia, embora ímpetos sádicos corressem em arrepios pelo corpo. Limitei-me a enxotá-lo do muro.
Levei as penas para dentro, onde limpei e guardei ao lado da famigerada tela, para fitá-las toda vez que desviasse os olhos injetados, nutrindo de indubitável nostalgia.
24 novembro 2007
O garoto, A pomba e A pasta
Uma brisa fria corria por entre os troncos semi-nus, fazendo folhas mortas suspirarem ao serem deslocadas de seus metódicos montes.
Com as faces coradas e a respiração irregular, ele deambulava por entre as árvores. Sozinho, com sua pasta. Parecia cansado, cabisbaixo, embora encarasse o mundo com suas esferas cor de âmbar.
O parque estava deserto e os bancos disfarçados com o cenário. Ele semicerrou seus olhos de longas pestanas à procura de um. Ao sentar-se, notou uma pilha meio desfeita de folhas ao lado do banco. Depositou sua pasta e mochila a seu lado e recostou. Na extremidade de sua visão interpelavam-se automóveis guinchantes e volta e meia alguma buzina estridente. O garoto olhou de esguelha para a sua pasta. Hoje era o dia de entregar uma redação à professora. Ela estava ali, mas ele não queria entregá-la. Não era apenas a timidez, havia a sensação de não poder entregar aquilo, coisa que revirava em seu estômago e irradiava uma fraqueza em seu ventre. Também não conseguira escrever mais nada. A história de um jovem adolescente que morrera por overdose de heroína. Real demais, sua professora certamente contaria para sua mãe, e ele não queria vê-la triste.
Soprou um vento mais encorpado e uma espiral de folhas rodopiantes lançou-se contra suas costas cobertas por um suéter de lã. Ele praguejou baixinho, tentando retirar aquelas encarrapitadas no tecido, sem muito sucesso.
Uma cantiga assolou sua mente, uma cantiga sem letra, cantada por uma voz infantil chorosa. Dava-lhe certo desconforto, mas ela havia grudado em sua cabeça feito sanguessuga. Cantarolando com a voz suave e soprada dos mancebos, ele olhava alternadamente o parque e a pasta. O parque e a pasta. O parque e a pasta.
Numa dessas incursões ao parque que ele viu esparramada no chão uma minúscula silhueta cinzenta, tremendo feito uma grande colher de gelatina; o garoto, com os olhos cor de âmbar reluzindo de curiosidade e dúvida. Embaçado. Ele não conseguia identificar o que era aquilo.
Espiou no relógio. Eram nove e meia da manhã.
Ele pôs-se de pé. Andou, olhando para trás como para se certificar que a pasta não havia sumido. Embaçado. Enevoado. A silhueta cinza era um pássaro. Um filhote, constatou o garoto, ao agachar-se ao lado. Voltou seus olhos para cima, protegendo-os da luz com as mãos. Aquilo era um ninho? Ele não saberia dizer, estava tudo tão embaçado...
Seja como fosse, tinha caído. O frágil esqueleto havia desconjuntado e a asa parecia torcida em uma posição anti-anatômica, assim como uma de suas pernas. Suas penas estavam avermelhadas de terra e arrepiadas em diversas direções. Os olhinhos de contas da ave estavam vidrados em seu rosto e iam tornando-se opacos, sem o brilho daquela manhã nublada.
Os olhos de âmbar fitavam o cadáver ainda fresco com um misto de tristeza e espanto. Estavam dilatados, brilhantes.
Um rugido esganiçado de um freio arrancou-o do torpor e o fez retornar nervosamente para perto da pasta, largando o pássaro de olhos de contas na poeira avermelhada. O relógio riscado marcava dez e dez. Procurando nos bolsos de sua mochila, achou dinheiro suficiente para comprar um pão com manteiga. Estava com fome.
O garoto jogou a bolsa em suas costas e apanhou a pasta. Saiu andando, cantarolando aquela lúgubre cantiga sem palavras e com os olhos opacos da ave em vívida recordação.
Contornou o parque num passo ausente e distraído. Havia uma padaria do outro lado da rua, com doces e mulheres vestidas de cores claras e toucas no cabelo. Ele tornou à esquerda, no asfalto malhado de branco.
Os ouvidos, próximos aos tranqüilos olhos cor de âmbar ouviram guinchos ensandecidos, e um capô prateado atirou a pasta e o rosto tristonho para o alto.
Como uma boneca de trapos, o garoto caiu, com os seus olhos dourados arregalados de surpresa tingindo-se de escarlate.
Uma mulher gritou, ele ainda a ouviu. Começou a sentir sua suéter cheia de folhas ficando pegajosa e quente. Seu rosto tombou para um dos lados - ele não sabia mais dizer qual era. Ele começou a ver, gradativamente, por entre um nevoeiro vermelho, sua mão lívida contra o asfalto cor de chumbo. Tão escuro. Tão dolorido.
Uma pessoa endireitou seu rosto, com um ar de repugnância e misericórdia estampado no rosto.
O sangue ia se alastrando, a histeria aumentando. Mas ao garoto o volume dos gritos foi cedendo espaço à cantiga despalavrada e a parca imagem do céu e da pessoa recortada contra o mesmo foi confundindo-se com a recente lembrança das duas contas pretas presas acima do bico daquela ave, perdendo o brilho. Ele tentou tatear a sua volta, procurando a pasta, mas ela não estava mais ali.
16 novembro 2007
quantas?
quantas vezes vou sorrir, quantas vezes vou sofrer, quantas vezes vou segurar na ponta da língua, a vontade estúpida e tapada de cantar, de dizer, de sumir..?
quantas vezes vou dizer que o esqueci?
quantas vezes vou deixá-lo passar (como o samba de chico) e quantas vou revivê-lo, como brasa em lareira?quantas vezes vou desejá-lo, quantas vezes descartá-lo, jogando sua imagem no canto esquecido e escuro?
por que não ficas lá de uma vez?
quantas vezes vou mostrar-lhe a porta? quantas vezes pedirei para ficar? quantas vezes vou segurá-lo e empurrá-lo, simultaneamente?
quantas vezes?
05 novembro 2007
Sonhei (Lenine)
Sonhei e fui, sinais de sim,
Amor sem fim, céu de capim,
E eu olhando a vida olhar pra mim.
Sonhei e fui, mar de cristal,
Sol, água e sal, meu ancestral,
E eu tão singular me vi plural.
Sonhei e fui, num sonho à toa,
Uma leoa, água de Goa,
E eu rogando ao tempo: - Me perdoa
E eu rogando ao tempo: - Me perdoa
Sonhei pra mim, tanta paixão,
De grão em grão, verso e canção,
E eu tentando nunca ouvir em vão.
Sonhei, senti, sol na lagoa
Céu de Lisboa, nuvem que voa,
E um país maior que uma pessoa.
Sonhei e vim, mares de Espanha,
Terras estranhas, lendas tamanhas,
E eu subi sorrindo essa montanha.
E eu subi sorrindo essa montanha.
Sonhei, enfim, e vejo agora,
Beijo de Aurora, ventos lá fora,
E eu cantando a Deus e indo embora.
E eu cantando a Deus e indo embora.
faz tanto sentido...
01 novembro 2007
28 outubro 2007
"Desde que o Samba é Samba é Assim"
Mas hoje, justo hoje, com esta prezada pessoa afastada, longe, excessivamente forasteira, consegui me acalmar ao som das minhas mãos frenéticas correndo pelo teclado, tentando com uma certa dose de frustração executar uma peça de Chopin, uma tal de "Valsa Brillante" (número não-sei-das-quantas). Foi algo aliviante, como quando consegui fazer um melisma certo, com a maldita corrente de ar apoiada. Uma coisa sem querer, desavisada e alentadora. Foi terapêutico. Bom. Estava tão tristonha, sem notícias, nada além de um apático e-mail mal humorado. "Cantando eu mando a tristeza embora" diz Caetano, Ele diz "Tocando eu mando a tristeza embora" e por um tênue momento, consegui assentir.
A tristeza aflita e culposa tornou numa serenidade incômoda. E cá estou eu, na minha aflitividade desabafada, sem surdina, entendendo essas desventuras e bichos estranhos que somos;nozes (macadâmias de preferência).
27 outubro 2007
Meu olhar, se quiser ver.
Minhas mãos, se te perder.
Meu sorrir, se te faltar.
Minha mente, a te buscar.
Meus sonhos, a te cobrir.
Meu peito, a te seguir.
Minha alma, a te velar.
Meu choro, se te secar.
Minhas pernas, se quer ir.
Minha riso, se quiser vir.
Meus braços, se tropeçar.
Minha face, pra apertar.
Meu dedo, pr'em ti escrever
Meu colo, pra esqueçer
Meu canto, pra te ninar.
Se teu corpo todo não aguentar
O mundo a rodar e a vida a cerzir,
E, exausto, quiser fugir, cair...
Teras meu corpo todo, a te apoiar.
(28/09/2006) - Márcus Vinicius
16 outubro 2007
Abismos.
Assim como existem coisas bobas que insistem ferrenhamente a lhe deixar radiante. Uma gentileza, um sorriso sincero, uma música que ansiou por ouvir todo o dia, uma brisa fresca nesses dias insuportáveis de pseudo-primavera (ou uma sombra e água fresca), um gosto bom...
Quando olho para o resto, raramente consigo ver a mesma sensação que tenho. Recai uma fragilidade sobre meus ombros que me deixa desamparada. Tem tantas coisas bonitas, mesmo na feiúra. A me sembra che le persone non capiscono che il bello e il brutto sono la stessa cosa.
É como a tarde em que dei de comer ao Netuno. Vocês não entenderiam o que foi aquilo.
09 outubro 2007
05 outubro 2007
De repente, não mais que de repente...
24 setembro 2007
Dança das Cabeças
18 setembro 2007
As conseqüências (embora as tremas tenham sido banidas, eu insisto) dos atos domenicais foram brutas, mas o preço que se paga por poucas horas de irresponsabilidade são mais embriagantes do que a própria vodca imersa em soda 'Antarctica'. Soa covarde, mas é tão bom fugir do mundo, da sociedade nua e crua, da vida cotidiana.
Ah, eu repetiria, até mesmo com todos os vômitos e todas as tonturas, com os pés machucados de correr no asfalto áspero, tudo, tudo. É tão bom fingir não se importar com as coisas; sentir uma temperatura agradável passeando pela pele, numa sensação inebriante de tontura sutil, aparentemente inofensiva, adocicada; correr e sentir o vento atropelar o seu rosto com delicadeza, ver as estrelas embaçadas bruxulearem e se movimentarem em 'pequenas' distâncias; rir das coisas mais estúpidas que no máximo renderiam um sorriso torto e zombeteiro nos dias de mau humor; ouvir uma boa música abafada atrás de si, liberta por uma porta escancarada; escutar o som do acelerador precipitado; ver sorrisos contagiantes misturando-se nas bocas alheias; vagar sem pressa por pensamentos escorregadios e nem sempre muito bem-vindos, examinando dúvidas, possibilidades, fatos...
E andar? Ah... andar. Nunca flutuei, mas imagino que a sensação deva ser semelhante, levitando a poucos centímetros do chão, vendo o mundo entortar e endireitar como num convés de navio.
A vontade de escrever vazou e foi embora, um dia quem sabe eu termine este texto.