28 julho 2008

Relances - I

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__As luminárias da rua dissipavam sombras na rua deserta. Pairava o silêncio mortal da madrugada. Um discreto Opel Olympia desacelerou a alguns metros da fábrica, e duas silhuetas saltaram do carro. O carro seguiu em frente, deixando para trás um casal hesitante e ligeiramente estranho um ao outro e ao ambiente. Uma jovem de cheios cabelos castanhos vestia um poncho andino verde-oliva; um de seus braços estava cruzado na barriga, e o outro acomodava um longo tubo oculto pela vestimenta. O homem mantinha-se a uma distância prudente de sua companheira, e examinava o lugar atentamente, apoiado numa foice. Trajava uma roupa desgastada e esvoaçante. O Opel logo sumiu de vista. Mantiveram-se em silêncio. A rapariga dirigiu a seu parceiro um olhar incisivo, que foi polidamente ignorado. Então encarou a fábrica e começou a se aproximar dela. Próximos à entrada haviam dois carros civis e sete viaturas, cujas sirenes silenciosas irradiavam seus metódicos clarões avermelhados. A porta de entrada do edifício estava arrombada.
__Um clarão surgiu no fim da rua, acompanhado de um som de explosão. Ambos observaram surpresos 'a distração' providenciada pelo dono do Opel. Eles ouviram a praguejação generalizada e os gritos de ordem seguirem o arranque dessincronizado de alguns carros. Cinco automóveis policiais passaram pela guarita e foram em direção à luminiscência alaranjada que irrompera com a explosão. Os dois carros oficiais que restaram estavam flanqueando a porta da fábrica.
__'Louis, vamos' sussurrou a jovem, pegando no pulso do homem para chamar-lhe a atenção. Ele observou-a com frieza e puxou o braço para si. A moça deu-lhe as costas e andou com cautela em direção à entrada da fábrica. Furtiva, passou pela guarita vazia e se escondeu da vista das viaturas atrás de um Dodge preto. Embora não conseguisse ver o interior do automóvel na sua diagonal, só havia um policial no carro à frente, e ele estava recostado no banco. Ela sorriu. Louis examinou seus passos e depois de alguns instantes seguiu-a. Assim que ele chegou, Irène foi se deslocando para a traseira da viatura oficial. Ao iniciar mesmo caminho, Louis sentiu uma sensação desconfortante apertar seu pomo-de-adão, e preocupado com isso, esqueceu totalmente da pouca coisa que sabia ter de fazer ali.
__Irène olhou para trás para ver onde o filhote estava, frações de segundo antes de ouvir um metálico ruído no vidro da viatura. Com o canto do olho constatou que o policial no interior do veículo pulou de susto e em seguida saiu do carro, com uma pistola já apontada e destravada para o vidro do passageiro. Louis encarou-o surpreso, como se saísse de um transe, depois recolheu sua foice e preparou-a. Dois outros policiais saíram da viatura adiante, com as armas também apontadas. 'Largue a foice, camarada' disse o mais próximo. Os outros se aproximavam.
__Irène praguejou. Agora era mais um para ir buscar depois. Todos estavam reunidos, cercando o filhote, que após algumas palavras secas soltara sua arma. Ela abaixou-se ainda mais e correu para a porta arrombada, enquanto o algemavam e o atiravam no chão, dirigindo-lhe um facho de luz na sua cara. O cara maior riu de alguma coisa que o algemado dissera e retrucou, em altos brados 'De que isso me interessa? Isso não é ponto turístico, ainda mais a essa hora da madrugada'. Os outros se afastaram, enquanto o grandalhão dizia 'Então vamos fazer um interrogatório' antes de chutar-lhe a boca do estômago. Irène retirou das costas sua cimitarra e saiu da recepção apagada da fábrica, indo furtivamente para onde o ar fedia mais a coisa ruim.
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__'Você está sozinho?' rugiu o policial. Louis resmungou qualquer coisa inaudível, recebendo uma coronhada na cabeça. 'Vamos, diga o que está fazendo aqui!' Ele replicou, com a voz rascante 'Nem eu sei'. O homem deu uma gargalhada 'É o que todos dizem, não é?' Guardou a pistola no cinto, ao lado do suporte dos suspensórios, e desafivelou um envernizado porrete. Seu corpo tingia-se de vermelho esporadicamente. 'Vou lhe apresentar uma amiga, então: Esta é a Palavra' Ele acenou com o porrete. 'Em reuniões costuma-se dizer que quem está com a Palavra sempre tem razão... e o que é isso, senão uma reunião?' Louis ouviu-a silvar vindo ao seu encontro, contra o ar parado. Seus lábios se abriram num rosnado quando uma repetina escuridão (re)ofuscou-lhe a vista.
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__Irène estava terminando de subir as escadas quando ouviu gritos roucos e barulho de carne dilacerando, junto de metal amassado. Deixou escapar um sorrisinho. Já não era mais um filhote. Apressou a cadência, enquanto retirava de debaixo do poncho um braço torto enfaixado, com tufos de pêlos castanhos saindo de alguns pontos.

21 julho 2008

shhhh....

O sorriso singelo sumia insinuando-se entre as silhuetas esguias que silenciosamente saíam de cena.

16 julho 2008

"O Dia da Criação"

"Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado." - Vinicius de Moraes


Sua boca parecia ter chupado o cabo de um guarda chuva pela noite adentro. Uma trilha escorrera vertiginosa sobre suas maçãs, deixando um rastro de pele ligeiramente mais rígida que a maciez costumeira. O pequeno urso estava espremido no seu abraço agoniado e fones de ouvido pendiam do lado do travesseiro, desligados pela espera; junto deles havia um celular ligado e aberto na agenda de contatos - a bateria dava seus últimos suspiros. A inevitável luminosidade diurna viera, plúmbea como as asas de uma pomba veneziana, plúmbea como o pesar que envolvia o quarto. O vento açoitava o vidro das janelas com o guincho estridente dos ramos depenados. Emergiu o corpo das cobertas e enfiou os pés em uma pantufa.
O espelho defronte a cama delatava uma face inchada de olhos injetados. A vida ainda continuava, naquela situação péssima. Os soluços entalados, os gemidos abafados, as melodias opressivas, o orgulho perante a quebra.
"Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado"
Era sábado, então. Havia a praça, a combinação, nem tudo estava perdido. Águas de alívio subiram aos olhos, ela as afastou com impaciência. Elas poderiam esperar um pouquinho mais, só até ela poder enfim desabar nos braços de Alguém. Espirrou. Fazia frio.
Ainda desfilavam diante de si aquelas lindas idealizações, desafiadoras. Os cabelos ruivos em profusão, as alturas contrárias, os erros perdoados, os maus entendidos resolvidos... e um final feliz. Observando o louro acinzentado do agora, do real, do palpável, ela via com os olhos transbordantes que reservara a si mesma algo que era de longe muito distante do que queria, ou fingia querer.
"Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado"
Lavou o rosto, retirando o sal seco de suas bochechas. Mudou a roupa e tomou o café mais rápido que conseguiria, desviando de seus pais o máximo possível. A saturação de lágrimas não saía da iminência do dilúvio, e assim ela saiu de casa, depois de dar um beijo úmido em seu urso e apanhar sua mochila.
Foi-se no ônibus verde, pegando conexão com outro e enfim descendo numa avenida arborizada. As coisas pareciam um pouco fora de órbita, mas ela aceitou isso como sua condição interior.
"Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado"
Chegou atrasada à praça, mas nada de Alguém. De prontidão, o líquido morno respingou das pálpebras pesadas, e retirando os óculos ela secou o rosto, com a manga. Vai que tem um Outro Alguém por aqui. Por uma das poucas vezes não queria vê-Lo, e prestativo como sempre, ele não estava lá. Se aproximou do lugar adotado como ponto de encontro. Nada de ninguém. A praça parecia meio morta, as barracas eram poucas, as pessoas, estranhas.
"Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado"
Mas era sábado. Isso era definitivamente estranho, não havia viv'alma ali! E cedo propriamente não era, já passava das onze e um terço... talvez estivessem dando uma volta; a praça era grande, afinal. Fez o círculo e parou de novo, no ponto de partida. E nada, de ninguém. Sequer um conhecido. As pessoas passavam por ela, enquanto ela os fitava, decepcionadamente perplexa. Onde estava todo mundo? O que acontecera com o ritual de sábado? Eram férias até, oras! Todas os fins de semana, todas as pessoas... nem mesmo o palhaço, o infernizador, não restava ninguem ali.
"Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado"
Ela se sentou num banco, onde tinha um visão perfeita da passagem, do mundo. O tempo era varrido pelo vento, deixando somente o frio e o desolamento. Nada de ninguém. Ela pegou o celular e ligou para Alguém, tentando conter a sensação de abandono, de estranhamento e de desalento em torrente. Precisava ouvir uma palavra tranquilizadora, uma garantia de que não estava realmente no lugar certo mas no lugar errado, que ainda conhecia alguém, que não estava sozinha. Caixa Postal. Menos calma, tentou a casa. Sem resposta.
"Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado"
O guarda olhou de relance, enquanto ela abraçava os joelhos e se esforçava ferrenhamente a não chorar tudo ali, de uma vez. O tempo passava e ela tornava a ligar, não aceitando que o mundo de repente sumira, no relance do espelho. Nada. Nada. Nada. Pensou num amigo que poderia estar trabalhando por ali e ligou, já em vias de desespero. Chamou uma eternidade e enfim alguém atendeu. Mas não era ele, era uma moça. 'Não, ele não está... foi para o colégio'
"...E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado"
Ela enfim se levantou, procurou mais um pouco, embora só surgissem na sua visão estranhos e mais estranhos. De olhos rasos desistiu e deixou a praça, lugar não mais tão seguro, tampouco acolhedor. As pessoas a encaravam com um misto de pena e diversão.
Sozinha, ela desceu as ruas, com a face novamente lavada. A sensação de ter estourado a bolha que envolvia seu mundo a deixava vagando ali, de olhos vermelhos, numa dimensão de seres insólitos.
"Porque hoje é sábado"

14 julho 2008

Um Conto a Quatro Mãos (XIV)

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"Minha meta, minha metade
Minha seta, minha saudade
Minha diva, meu divã
Minha manha, meu amanhã" - Lenine
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__Muitos olhos. Olhos demais, fixos nele, daquele jeito insuportável. Os ruídos retomaram-se, alvoroçados. Mas que raios..? Abaixou então os olhos para si, enquanto ouvia o Anfitriã entoar, por entre seus dentes perfeitos

''Ah, Mochara, não esperava isso de você''

__Houve uma pequena pausa. Sua aparência era idêntica a de instantes atrás.

''Huhuh, vejam só, que insistência
Sustentar por aqui este ar tão blasé
Deixe aqui fluir sua aparência
Tão verdadeira como essas que vê''


__Sua percepção corporal ao som deste cântico era periclitante, antes mesmo de seus olhos embaçarem numa estranha confusão mental. Rodopiava tudo, todos, numa totalidade embaralhada, de modo que achou ele melhor cerrar as pálpebras. Ao cabo de alguns instantes a balbúrdia foi acalmando, e Můjpřítel começou a sentir sua pele lisa; o vento deslizava como se escorregasse. Sua pelagem aparentava haver desaparecido. Sentia-se volátil como uma bexiga e leve, muito leve, como a sensação de um ébrio ao caminhar; parecia estar flutuando...
__Seus olhos focaram então em seu corpo. O esforço para enxergar a si mesmo parecia alongá-lo, se bem que aquele lugar era todo meio estranho... Viu-se então translúcido, quase transparente, com a luz trespassando-o e desprezando uma sombra tênue e tremelicante no chão. E o chão, seco e poeirento, encontrava-se longe de seus pés, ou de algo que deveria sê-los. Sua pele estava lustrosa, apesar de transparente.
__O Anfitriã encarou-o, divertido, puxando em seguida de sua veste uma corrente fina com um belo relógio de bolso, prateado. Fitou sua imagem e arregalou os olhos (ou seus correspondentes naquela situação estranhíssima), estupefato. A jovem do caderno sorriu, e a garotinha encarrapitada no Anfitrião anunciou, numa voz frágil e soprada 'Olha Sarah, ele parece um pepino!'. Sarah assentiu, e em seus brilhantes olhos Meumigo viu e aceitou que definitivamente era uma bolha. Um pepino-bolha.

12 julho 2008

A Insustentável Leveza do Ser - Milan Kundera

__"A traição. Desde nossa infância, papaei e o professor nos repetem que é a coisa mais abominável que se possa conceber. Mas o que é trair? Trair é sair da ordem. Trair é sair da ordem e partir para o desconhecido. Sabina não conhece nada mais belo que partir para o desconhecido. (...)
__Mais uma vez, estava possuída pelo desejo de trair: trair sua traição inicial. Anunciou ao marido (não via mais nele um excêntrico, mas sobretudo um bêbado incômodo) que iria deixá-lo.
__Mas se traímos B., por quem tínhamos traído A., isso não quer dizer que vamos nos reconciliar com A. A vida do artista de quem se divorciara não se parecia com a vida de seus pais traídos. A primeira traição é irreparável, ela provoca, numa reação em cadeia, outras traições das quais cada uma nos distancia cada vez mais do motivo da traição inicial.
(.......)
__Já conhecemos a resposta: quando ela traiu seu pai, abriu diante de si uma longa estrada de traições e cada nova traição a atraía como um vício ou como uma vitória. Ela não quer ficar dentro da ordem e nela não ficará! Não ficará sempre na ordem com as mesmas pessoas e as mesmas palavras! É por isso que está transtornada com sua própria injustiça. Esse sentimento não é desagradável, ao contrário, ela tem a impressão de ter conseguido uma vitória e sente como se um personagem invisível a aplaudisse.
__Mas a embriaguez logo se transforma em angústia. Era preciso um dia chegar ao fim da linha! Era preciso um dia terminar com essas traições! Era preciso parar de uma vez por todas!
__Era noite e ela andava com um passo apressado na plataforma da estação. O trem para Amsterdã já estava à espera. Procurava seu vagão. (...)"

07 julho 2008

Leather - Tori Amos

Ouvi essa música depois de escrever o excerto anterior, e ela me rendeu alguns pontos comuns.
Estado pós-Neil Gaiman ligado.

Look I'm standing naked before you
Don't you want more than my sex
I can scream as loud as your last one
but I can't claim innocence

Oh god could it be the weather
Oh god why am I here
If love isn't forever
and it's not the weather
Hand me my leather

I could just pretend that you love me
The night would lose all sense of fear
but why do I need you to love me
when you can't hold what I hold dear

Oh god could it be the weather
Oh god why am I here
If love isn't forever
and it's not the weather
Hand me my leather

I almost ran over an angel
He had a nice big fat cigar
"In a sense" he said "you're alone here
So if you jump you best jump far

Oh god could it be the weather
Oh god why am I here
If love isn't forever
and it's not the weather

Oh god could it be the weather
Oh god it's all very clear
If love isn't forever
and it's not the weather
Hand me my leather