27 dezembro 2011

Um.

A noite é quente. Sente as costas suadas a empapar o pijama, o pijama a embeber o lençol. A cama? Sequer desfeita. O exaustor gira lenta e dolorosamente. O primo, duas camas ao lado, ressona. Os outros estão em paz. E ela ali, a suar feito garrafa fora do freezer.
Algumas ambulâncias passam. Funks correm pela avenida, também.
Passa a mão pela testa e enxuga no lençol. Vem então da janela escancarada um ruído estranho (som de lugar claro, de grandes prateleiras abarrotadas, de pessoas mal humoradas e crianças gritando e anúncios coloridos)... de carrinho de supermercado. Vem do estacionamento do prédio, o barulho de um carrinho, arrastado de um lado ao outro.
Baque-silêncio(breve, sem delongas)-movimento em fórmula cíclica, tal qual os gemidos do circulador de teto. Ela se levanta, curiosa. Se contorce até a janela, e nada vê além de um chinelo solto no meio do asfalto. Deixa o quarto, devagar para não tropeçar nos sapatos largados, cadeiras tortas e quadros imprevistos. Ela avança pelo breu, torce a chave com cuidado e sai pela porta da frente. Deixa-a destrancada. O sensor de movimento acende a luz e a cega. O elevador é sofridamente claro. Ela desce no estacionamento aberto. O céu tem o escuro desbotado das luzes da cidade. Está quente.
Há um homem empurrando o carrinho. Tem só um pé calçado, cabelos com fios prateados, entradas e uma expressão vazia. Ele vem em sua direção, sem parecer tê-la notado. Ela se desvia e ele passa com o carrinho, para bater numa parede. Baque-silêncio. Ele dá ré e ruma para outro lado. Movimento.
Baque-silêncio-movimento.
Ela o observa.

23 dezembro 2011

DRUMMOND, Carlos. Cortar o tempo

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi realmente um sujeito genial.

Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.

Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui para frente tudo pode ser diferente

13 dezembro 2011

...enquanto os patos vão pro sul

Soa egocêntrico, é egocêntrico - afinal, hipocrisias à parte, quem não é?

É curiosa essa sensação de migrante; e convenhamos, não é como se eu fosse o estereótipo, de mala e cuia para um mundo novo. Meu "mundo novo" se localiza a cem quilômetros de distância do "mundo velho" (se muito), e as interpenetrações desses mundos são muitas e frequentemente contínuas. Mesmo assim, surge esse negocinho estranho - essa aura de não-pertencimento a nenhum dos mundos, de deslocamento tanto aqui quanto ali. É um mal-estar de existir e de ter uma parte da sua história sem relação com o lugar onde se encontra - semelhante a ter um pedaço de si que não pertence àquele ambiente.
Refinando um pouco mais essa 'síndrome do migrante' é muito parecida - se não igual - àquele ranço de ver o tempo passando, de ver as coisas mudando: árvores de infância derrubadas, prédios no lugar de outros prédios, ruas que mudam de mão, pessoas que transformam em algo que você deixa de entender. É a síndrome de quero-que-o-mundo-fique-como-está, e que nada, nem ninguém, mude. É a dicotomia - pensando em um texto que li hoje - "[de se incomodar] com a intransigência da não repetição e com a intransigência da expectativa de repetição."