08 dezembro 2007

Memórias Papaguenianas

Toda vez que eu levantava os olhos injetados da tela e admirava a fulgurante e verde paisagem que se estendia do lado de lá da parede envidraçada, vasculhava o verde-marrom-cinza à procura daquele pássaro. Ao pesquisar na internet havia descoberto que seu nome (popular) era sanhaço. Com o corpinho plúmbeo e as asas e costas manchadas de um verde-besouro. Seus olhos eram pontos pretos irriquietos que pareciam carrapatos-estrela lustrosos. Era um Pequeno resplandecente, que vivia aqui e acolá no jardim. Quando o vi atacando vorazmente um mamão maduro no pé, dei-lhe o nome de Papagueno. Ele tinha um canto que me inebriava (embora estivesse mais para falsetista que tenor), mas que não ouvia quando estava do lado de cá do vidro - no Mundo que seguiu adiante, como diria Roland de Gilead.
No começo, sua visita era esporádica, mas quando os mamões amadureceram, era comum vê-lo se locupletando numa fruta que era do seu tamanho. Tinha pena de retirar os mamões, principalmente pelo fato de que não mais o veria caso fizesse isso. Para retê-lo quando os mamões haviam sido consumidos por completo, passei a largar pedaços de fruta nos degraus de pedra externos, comida que passava desapercebida - ou ignorada - pela cadela que perambulava do lado de fora.
O tempo foi passando, e eu cada vez mais buscava o conforto daquele corpinho leve por perto, mesmo que no mundo do lado de lá do vidro. Criei uma bela pasta de fotos do pequeno Papagueno. Ele sempre estava lá, assim como o travesseiro para acomodar a minha cabeça pesada de pensamentos.
Então, houve um dia. Ergui minha vista da tela e afastei minha mão do teclado negro, procurando pelo Pequeno. Varri o jardim minuciosamente, mas nada do corpo cinza de verde-besouro, nem dos inteligentes carrapatos lustrosos. Baixei novamente meus olhos para a tela, mas a inquietação começou a me cutucar impiedosamente, e eu tornei a examinar através da vidraçaiada. Ele não estava lá. Olhei para os degraus pétreos e a banana continuava ali. Levantei-me e atravessei a fronteira entre os dois mundos. Andando por entre as folhas mortas encontrei algumas penas rajadas do tão conhecido verde furta-cor. Aquelas pequenas amostras de Papagueno laceraram minha espectativa. Peguei-as com cuidado e pesar. Em seguida fiz uma pesquisa em profundidade, encontrando algumas outras próximas ao muro, untadas de um líquido escuro já seco e ligeiramente oleoso.
Por mais que caçasse os demais restos do pequeno Papagueno, nada mais vi, exceto os olhos gulosos do gato vizinho espreitando faiscantes por cima do muro. Raivosa, observei o ar petulante do gato, tão comumente mau humorado.
Matar o gato não podia, embora ímpetos sádicos corressem em arrepios pelo corpo. Limitei-me a enxotá-lo do muro.
Levei as penas para dentro, onde limpei e guardei ao lado da famigerada tela, para fitá-las toda vez que desviasse os olhos injetados, nutrindo de indubitável nostalgia.

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