15 maio 2015

no vagão

É domingo à noite, mas o vagão não está vazio. Ao contrário, há pessoas demais para um horário tão morto. Adolescentes bêbados gritando, casais de mãos dadas, senhores com jornais, músicos, viajantes solitários. Há uma mulher sentada com duas crianças. Segura-as com firmeza, e trava com os pés uma mala. Tem o rosto inchado, com manchas escurecidas que se insinuam por entre os cabelos e a pele negra. Olhos estão injetados e o maxilar travado. Fixa o nada.
Uma das crianças dorme, mais nova, sobre seu projeto de mochila. A outra, mais velha, está de pé e desligada.
Apita a chegada na estação. Os olhos da mãe entram em foco. A filha se põe alerta.
Portas abrem. Pessoas saem. Portas fecham.
Ambas relaxam, parcialmente.
'Próxima estação: ... ... Terminal Rodoviário Tietê'
A mulher sacode o filho adormecido. Um senhor ergue os olhos do jornal e bufa, em censura. Ela ignora, e coloca a criança de pé.
O trem pára e as crianças se desequilibram. Ela os puxa de volta, agarra a mala e marcha para fora.
Há tensão em seus ombros e pescoço.
'vamo logo. segura teu irmão. direito. não é pra soltar.'
'isso. agora me dá a mão. vem.'
Passam as catracas e ela agarra a mão da filha com mais força. O terminal é o mesmo formigueiro de sempre. Cheio de formigas desorientadas e enferrujadas da viagem. O cheiro é de gente.
Ela vai abrindo caminho e vai a uma guichê sonolenta. Compra duas passagens, depois de ralhar que pelo pequeno não ia pagar porcaria nenhuma.
Faltam vinte minutos.
A mulher olha ao redor, pega as crianças e vai até o caixa eletrônico. Tira todo o dinheiro que consegue e coloca no sutiã.
Descem para a plataforma. O mais novo senta em cima da mala e adormece de novo. A mais velha ajuda a mãe a preencher as passagens.
Os minutos passam aos trancos no relógio da estação. Elas analisam a plataforma.
Cinco minutos antes da partida o ônibus chega. A mulher enxota o filho e vai entregar a mala.
'cuida do teu irmão. e qualquer coisa grita'
Olha de relance a cada poucos segundos. Ela ainda está lá, segurando o braço do outro com firmeza.
Recebe o comprovante da mala e faz um gesto, eles se aproximam.
'Boa noite.' 'Boa noite.' 'Tem permissão de viagem?' 'O pai morreu' 'Tem certidão?' 'Não, moço, foi mês passado, ainda não saiu. Tem permissão de viagem antiga, serve?'
Ele hesita. 'Meus pêsames, dona'
'Que o Senhor o guarde. Posso subir?'
'Deixa eu ver a antiga pelo menos'
Ela vasculha a bolsa e entrega.
'Tudo bem. Pode subir'
'Obrigada, bom trabalho'
'Amém'
Acomoda os dois, põe o pequeno no colo e puxa a cortina.

14 maio 2015

Escritora de tempos.


Reescreves narrativas. Sim, as próprias, as vividas. Reinventas-as, tiras umas emoções, omites uns pedaços que não cabem no teu propósito. Contas a ti mesma: foi tudo tão de repente, chegou do nada, fiquei sem reação. Fantasias as coisas passadas para chafurdar ainda mais fundo. Esqueces das tuas faltas, das tuas culpas, palavras atravessadas.
Aí um dia encontras algo escrito, da época. Teu escrito, tua narrativa. Prova irrefutável de – veja bem, não era bem assim... viste chegando, cantaste a pedra e fizeste da mesma maneira. “como a mariposa indo de encontro à lâmpada” - escreveste. Axiomático.
De sopetão tudo fica meio confuso – mas, calma, então já sabias disso? As narrativas servem para muitas coisas – para iludir, para curar, para colocar panos quentes. Há fatos que nos entalam na garganta e nos fazem sufocar.
Também te fazem reincidir, pois te esqueces. A versão revisada faz sempre mais sentido, é melhor estruturada, tem uma tese, apresenta resultados. A outra só faz trazer inquietações, dúvidas cobertas de poeira, angústias, tristezas. Cruezas. E a certeza de que és tão igual a qualquer um. Um ser humano que desconstrói. E inventa. E se justifica, para ficar de bem com a pessoa mais importante desse teu mundo – tu.