14 novembro 2015

De-lira

Enquanto grande vivência deste sábado
14, pós sexta-feira agourenta,
descobri que a morte tem cheiro

Pestilento, diria
- confesso que procurei o almiscarado que me prometeram os poemas e romances - 
de cocô incontido
de ferida infecta
de ramela seca que não se permitiu tirar
de 39,4ºC.

Descobri também que
a morte é simples e direta
sem grandes rodeios:
é só dor, sofrimento
e depois mais nada
é líquido leitoso e
pi - pi - piii..

É um grande cansaço que enfim termina
uma exaustão que espasma
e petrifica.

Enfim, soube que a morte
não fecha olhos
nem permite que as orelhas os cubram
fica ali, naquela constatação inerte de que a vida continua para além;
de que a vida corre
e que a tarefa dos vivos, no fim, é a constante
e perene
despedida.

--

P.S. Acho que, por último, a morte é a limpeza dolorosa desse odor
é a espuma do sabão em pó
que esfregamos com força no cimento, para tirar os rastros
da doença
da sofferenza;

é o polimento das lembranças
(uma sistematização, talvez)
despindo-as do cheiro acre e putrefato
da dor esquelética
de quem diz "pra mim já deu"

- eu só gostaria de ter entendido.

08 novembro 2015

(M. C.)

Poderia escrever teu nome
70 vezes seguidas
Mas isso não espantaria
a saudade que sinto
de dizer o teu nome
entre sal e dentes
Isso em nada iria melhorar
a falta que faz teu corpo
dentro da sombra invisível
que diariamente se senta
a meu lado no restaurante
às 11h da manhã
Ou no lugar direito do automóvel
quando dirijo até a repartição
pública das finanças do estado
O tal Estado escavacado
e tão sobrevalorizado
Escrever o teu nome
repetidamente
primeiro em linhas verticais
depois horizontais
e mais tarde transversais
Como quem espera algum dia ser o vencedor
do Four in a Row


13 agosto 2015

Buzzati, Dino. Poema a fumetti.

Ve lo ricordate, amici?
Vocês se recordam, amigos?
Supremo bene,
O bem supremo.
non allegro, mai.
não alegre, jamais.
Perché sarebbe zero
Porque seria nulo 
se mancasse nel profondo quel pensiero
se faltasse no fundo aquele pensamento
che un giorno tutto finirà.
de que um dia tudo acabará.
Sì pure nel vizio più tortuoso,
Sim, mesmo no vício mais tortuoso
per la propagazione della specie
para a propagação da espécie
la natura urgeva, ricordando
a natureza urgia, recordando
il comune destino.
o destino comum.
La carne è il paradiso
A carne é o paraíso
solo perché ciascuno lasci
só para que cada um deixe 
un altro dietro a sé,
um outro atrás de si,
e così al termine
e assim, ao término
della divina congiunzione
da divina conjunção,
l’uomo si vedeva intorno
o homem via ao seu redor
la palude sterminata nel crepuscolo
o pântano ilimitado no crepúsculo
sotto la pioggia, e non anima viva
sob a chuva, e nenhuma viva alma
se non due lebbrosi laggiù in fondo.
a não ser dois leprosos lá embaixo, ao fundo.
E suonavano le maledette campane.
E soavam os malditos sinos.


10 agosto 2015

HILST, H. Cantares do sem nome e de partidas


VII


Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.
Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir. E te mandar escritos.
Rios de rumor no peito: que te viram subir
A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras
Mas com a mulher, aquela,
Que sempre diante dela me soube tão pequena.
Sabenças? Esqueci­-as. Livros? Perdi­-os.
Perdi­-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo veem aquela.

24 julho 2015

I've been kinder.

11 junho 2015

O estranho dia em que os motoristas de ônibus se tornaram cegos aos passageiros.

Sem sinal de parada – apertado por sei lá que criatura – passavam reto pelos pontos. Três, quatro braços estendidos se indignavam à sua passagem imperturbada. Não estavam lotados.
Foi-se um. Dois velhinhos resmungaram.
E foi-se outro. Três estudantes bufaram.
No terceiro, que parou para a descida de alguém, não atendeu nem mesmo às batidinhas no vidro. A trabalhadora esbravejou.

 

Os barulhos deveriam ser daquele troço que bate no vidro lá de trás, pensou. E seguiu viagem.

 

15 maio 2015

no vagão

É domingo à noite, mas o vagão não está vazio. Ao contrário, há pessoas demais para um horário tão morto. Adolescentes bêbados gritando, casais de mãos dadas, senhores com jornais, músicos, viajantes solitários. Há uma mulher sentada com duas crianças. Segura-as com firmeza, e trava com os pés uma mala. Tem o rosto inchado, com manchas escurecidas que se insinuam por entre os cabelos e a pele negra. Olhos estão injetados e o maxilar travado. Fixa o nada.
Uma das crianças dorme, mais nova, sobre seu projeto de mochila. A outra, mais velha, está de pé e desligada.
Apita a chegada na estação. Os olhos da mãe entram em foco. A filha se põe alerta.
Portas abrem. Pessoas saem. Portas fecham.
Ambas relaxam, parcialmente.
'Próxima estação: ... ... Terminal Rodoviário Tietê'
A mulher sacode o filho adormecido. Um senhor ergue os olhos do jornal e bufa, em censura. Ela ignora, e coloca a criança de pé.
O trem pára e as crianças se desequilibram. Ela os puxa de volta, agarra a mala e marcha para fora.
Há tensão em seus ombros e pescoço.
'vamo logo. segura teu irmão. direito. não é pra soltar.'
'isso. agora me dá a mão. vem.'
Passam as catracas e ela agarra a mão da filha com mais força. O terminal é o mesmo formigueiro de sempre. Cheio de formigas desorientadas e enferrujadas da viagem. O cheiro é de gente.
Ela vai abrindo caminho e vai a uma guichê sonolenta. Compra duas passagens, depois de ralhar que pelo pequeno não ia pagar porcaria nenhuma.
Faltam vinte minutos.
A mulher olha ao redor, pega as crianças e vai até o caixa eletrônico. Tira todo o dinheiro que consegue e coloca no sutiã.
Descem para a plataforma. O mais novo senta em cima da mala e adormece de novo. A mais velha ajuda a mãe a preencher as passagens.
Os minutos passam aos trancos no relógio da estação. Elas analisam a plataforma.
Cinco minutos antes da partida o ônibus chega. A mulher enxota o filho e vai entregar a mala.
'cuida do teu irmão. e qualquer coisa grita'
Olha de relance a cada poucos segundos. Ela ainda está lá, segurando o braço do outro com firmeza.
Recebe o comprovante da mala e faz um gesto, eles se aproximam.
'Boa noite.' 'Boa noite.' 'Tem permissão de viagem?' 'O pai morreu' 'Tem certidão?' 'Não, moço, foi mês passado, ainda não saiu. Tem permissão de viagem antiga, serve?'
Ele hesita. 'Meus pêsames, dona'
'Que o Senhor o guarde. Posso subir?'
'Deixa eu ver a antiga pelo menos'
Ela vasculha a bolsa e entrega.
'Tudo bem. Pode subir'
'Obrigada, bom trabalho'
'Amém'
Acomoda os dois, põe o pequeno no colo e puxa a cortina.

14 maio 2015

Escritora de tempos.


Reescreves narrativas. Sim, as próprias, as vividas. Reinventas-as, tiras umas emoções, omites uns pedaços que não cabem no teu propósito. Contas a ti mesma: foi tudo tão de repente, chegou do nada, fiquei sem reação. Fantasias as coisas passadas para chafurdar ainda mais fundo. Esqueces das tuas faltas, das tuas culpas, palavras atravessadas.
Aí um dia encontras algo escrito, da época. Teu escrito, tua narrativa. Prova irrefutável de – veja bem, não era bem assim... viste chegando, cantaste a pedra e fizeste da mesma maneira. “como a mariposa indo de encontro à lâmpada” - escreveste. Axiomático.
De sopetão tudo fica meio confuso – mas, calma, então já sabias disso? As narrativas servem para muitas coisas – para iludir, para curar, para colocar panos quentes. Há fatos que nos entalam na garganta e nos fazem sufocar.
Também te fazem reincidir, pois te esqueces. A versão revisada faz sempre mais sentido, é melhor estruturada, tem uma tese, apresenta resultados. A outra só faz trazer inquietações, dúvidas cobertas de poeira, angústias, tristezas. Cruezas. E a certeza de que és tão igual a qualquer um. Um ser humano que desconstrói. E inventa. E se justifica, para ficar de bem com a pessoa mais importante desse teu mundo – tu.

17 abril 2015

BEAUVOIR, S. A Mulher Desiludida: A idade da discrição

"E, súbito, o fluxo me arrasta e me arrastará até que eu tombe na morte. Tragicamente, minha vida se precipita. E, entretanto, ela se escoa neste momento com que lentidão - hora por hora, minuto por minuto! É preciso sempre esperar que o açúcar derreta, que a lembrança se apague, que a ferida cicatrize, que o sol se ponha, que o tédio se dissipe. Estranho corte entre esses dois ritmos. Meus dias me escapavam aos galopes e em cada um deles eu enlanguescia."

19 março 2015

TIERRA, Pedro. Poema - Prólogo

Fui assassinado.
Morri cem vezes
e cem vezes renasci
sob os golpes do açoite.

Meus olhos em sangue
testemunharam
a dança dos algozes
em torno do meu cadáver.

Tornei-me mineral
memória da dor.
Para sobreviver,
recolhi das chagas do corpo
a lua vermelha de minha crença,
no meu sangue amanhecendo.

Em cinco séculos
reconstruí minha esperança.
A faca do verso feriu-me a boca
e com ela entreguei-me à tarefa de renascer.

Fui poeta
do povo da noite
como um grito de metal fundido.

Fui poeta
como uma arma
para sobreviver
                         e sobrevivi.


Companheira,
se alguém perguntar por mim:
sou o poeta que busca
converter a noite em semente,
o poeta que se alimenta
do teu amor de vigília
                                   e silêncio
e bebeu no próprio sangue
o ódio dos opressores.

Porque sou o poeta
dos mortos assassinados,
dos eletrocutados, dos “suicidas”,
dos “enforcados” e “atropelados”,
dos que “tentaram fugir”,
dos enlouquecidos.

Sou o poeta
dos torturados,
dos “desaparecidos”,
dos atirados ao mar,
sou os olhos atentos
sobre o crime.

Companheira,
virão perguntar por mim.
Recorda o primeiro poema
que lhe deixei entre os dedos
e dize a eles
como quem acende fogueiras
num país ainda em sombras:

meu ofício sobre a terra
é ressuscitar os mortos
e apontar a cara dos assassinos.


Porque a noite não anoitece sozinha.
Há mãos armadas de açoite
retalhando em pedaços
o fogo do sol
e o corpo dos lutadores.

Venho falar
pela boca de meus mortos.
Sou poeta-testemunha,
poeta da geração de sonho
                                          e sangue
sobre as ruas de meu país.
Sobreviveremos

Perdemos a noção do tempo.
A luz nos vem da última lâmpada,
coada pela multidão de sombras.
A própria voz dos companheiros tarda,
como se viesse de muito longe,
como se a sombra lhe roubasse o corte.
Nessa noite parada sobrevivemos.
Ficou-nos a palavra, embora reprimida.

Mas o murmúrio denuncia que a vitória
não foi completa. Dobra o silêncio
e envia o abraço de alguém
cujo rosto nunca vimos e, todavia, amamos.

Nessa noite parada sobrevivemos.
Sobreviveremos.
Ficou-nos a crença, de resto, inestinguível,
na manhã proibida.


(74)



(pseudônimo de Hamilton Pereira)

02 fevereiro 2015

27 janeiro 2015

Milton diz

...a paisagem se molhou.