28 setembro 2013

mãe-pátria

Era uma vez uma mãe
que assistia TV e tinha um filho em missão de paz.
Orgulhosa ela era
orgulhosa permaneceu quando um oficial bateu na sua porta
e com pompa fúnebre transmitiu-lhe seus pêsames.

Com lágrimas de orgulho foi ao enterro
com o rosto sobriamente radiante beijou a bandeira que cobria a madeira
- morreu pela pátria
dizia
na madrugada do dia dezesseis -
e parecia insensível à dor e à dúvida.

Até que um dia foi notificada
que o último pagamento do filho estava no quartel para ser retirado.
Qual foi o seu choque quando, ao chegar,
viu que o pagamento parava no dia quinze.

22 setembro 2013

A todos os Atlas

Às vezes eu penso no Atlas
sozinho segurando o mundo
...ou segurando seu sozinho do mundo?

Sentiria ele a presença do mundo ao redor?
Ou seria ele só mais um dos que andam pelas ruas
carregando nas costas um mundo?

Qualquer sozinho
é um mundo de peso.
Qualquer mundo
é uma pena sozinho.

19 setembro 2013

vivento

vi o vento
quando avoada ouvia você
falar sobre cousas loucas da vida

ele era mirrado, tímido e discreto
mas sorriu ao passar.

07 julho 2013

Irresoluto

Uma vida de relações inacabadas... Tantas pontas soltas que não se acha mais o fio principal (há?)

24 março 2013

SANT'ANNA, Affonso R. Assombros

Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

23 março 2013

Voler bene

A Itália vai me cativando aos poucos. É constante, como uma amante fiel e paciente. Ela se mostra, discretamente, nos pequenos gestos: em um relance de olhos verdes, em um arco velho de túnel, em uma paisagem esvoaçante da janela do trem, nos seus prédios que suplicam por uma reforma. Ela chama na dureza delicada do acolhimento do arcaico no dia-a-dia.

27 janeiro 2013

Notte d'estate

É noite, e chove. A família entra em casa, vê a cachorra a esperar defronte à porta de vidro da sala. Ela molha-se.
A Filha percorre os corredores da casa (chega à sala oposta) com pressa; abre o piano e verifica uma nota que cantarolava. Si natural. Urra para o outro lado da casa e fecha o piano; o Pai, do outro lado, aquiesce aos gritos.
A cadela arranha a porta da área de serviço.
A Filha vai para o banheiro, tira as lentes do olho, lava o rosto. Segue então para o quarto. No escuro, ouve uma gota cair com estrépito. Tateia a parede e acende a luz. Há uma goteira. Põe o pijama e os chinelos e vai para a cozinha. A cã está encarando a porta, vê-se o contorno no vidro granulado. A Filha abre a porta para pegar um balde e a cachorra, feliz, pula. A garota afaga, fala com a pequena com voz aguda e imbecil, e percebe que ela está molhada. Suspira. Chega perto da casinha, e remexe na pilha de panos de chão. Escolhe um balde e apanha dois trapos. Seca a cachorra, que, extasiada, se eriça e se sente coçar.

Uma cã centrifugada, um balde e um pano na mão.
"Boa noite"
E fecha a porta. Bebe água, apaga a luz e segue para o quarto.