13 dezembro 2007

Mote: Sob os panos da mesa, sua mão sobre meu jeans.

(http://em50letras.blogspot.com/2007/11/jeans.html)

ela percorreu com ligeireza o jeans vestido ao seu lado, por debaixo da toalha de piquenique. a solidez dos músculos por debaixo do pano causou-lhe uma quentura no ventre. apertou e arranhou o tecido. ele, com uma das mãos segurando um punhado de cartas em leque, abaixou a outra e agarrou-lhe os dedos irrequietos, firme e severo. seu olhar mostrava-se compenetrado na jogada do outro.
suspirou. amores confidenciais.
a mão relaxou aperto, paulatina e negligentemente.
a varanda estava aberta atrás deles. uma tímida brisa remexia as cortinas. pesadas.
o refresco estava derretendo seus cubos de gelo, num jarro de vidro. não estava tão quente, embora ela palpitasse e estremesse, com a noite escorrendo em seu dorso e o comichão flamejante irradiando inquietações pelo corpo e(s)xtático.
ela retirou com ternura seus dedos e voltou a passear sobre a perna coberta de um azul áspero. com o canto do olho viu o maxilar trincar e os fulgurantes olhos acinzentados lançarem um raio de pura censura. a perna mexeu-se, incomodada. as cartas balouçaram de maneira quase imperceptível. ela sorriu com a boca torta em um sarcasmo triunfante, levantou-se com um copo de refresco e rumou para a cozinha, em busca de mais gelo; aquela noite estava esvaziando toda a forma.
a gata estava deitada no final do cubículo, encarando-a com um misto de preguiça e indiferença. sustentando aquele olhar, a moça encostou na bancada de pedra fria (ah, a rígida frigidez a arrepiava, parecia arder em febre).
risadas na sala.
um apertão gélido arrancou-lhe de voluptuosos pensamentos. um agarrar possessivo. era ele, com a boca furiosa espremida em pequenas linhas.
ela puxou-o contra si e arrancou-lhe um beijo dos lábios comprimidos. sendo empurrada, mordeu o próprio com um ar arrogante e fitou-o.
ele deixou a cozinha, com passos duros. ela voltou a seus pensamentos, sustentando o ar desaprovador e faiscante da gata.

08 dezembro 2007

Memórias Papaguenianas

Toda vez que eu levantava os olhos injetados da tela e admirava a fulgurante e verde paisagem que se estendia do lado de lá da parede envidraçada, vasculhava o verde-marrom-cinza à procura daquele pássaro. Ao pesquisar na internet havia descoberto que seu nome (popular) era sanhaço. Com o corpinho plúmbeo e as asas e costas manchadas de um verde-besouro. Seus olhos eram pontos pretos irriquietos que pareciam carrapatos-estrela lustrosos. Era um Pequeno resplandecente, que vivia aqui e acolá no jardim. Quando o vi atacando vorazmente um mamão maduro no pé, dei-lhe o nome de Papagueno. Ele tinha um canto que me inebriava (embora estivesse mais para falsetista que tenor), mas que não ouvia quando estava do lado de cá do vidro - no Mundo que seguiu adiante, como diria Roland de Gilead.
No começo, sua visita era esporádica, mas quando os mamões amadureceram, era comum vê-lo se locupletando numa fruta que era do seu tamanho. Tinha pena de retirar os mamões, principalmente pelo fato de que não mais o veria caso fizesse isso. Para retê-lo quando os mamões haviam sido consumidos por completo, passei a largar pedaços de fruta nos degraus de pedra externos, comida que passava desapercebida - ou ignorada - pela cadela que perambulava do lado de fora.
O tempo foi passando, e eu cada vez mais buscava o conforto daquele corpinho leve por perto, mesmo que no mundo do lado de lá do vidro. Criei uma bela pasta de fotos do pequeno Papagueno. Ele sempre estava lá, assim como o travesseiro para acomodar a minha cabeça pesada de pensamentos.
Então, houve um dia. Ergui minha vista da tela e afastei minha mão do teclado negro, procurando pelo Pequeno. Varri o jardim minuciosamente, mas nada do corpo cinza de verde-besouro, nem dos inteligentes carrapatos lustrosos. Baixei novamente meus olhos para a tela, mas a inquietação começou a me cutucar impiedosamente, e eu tornei a examinar através da vidraçaiada. Ele não estava lá. Olhei para os degraus pétreos e a banana continuava ali. Levantei-me e atravessei a fronteira entre os dois mundos. Andando por entre as folhas mortas encontrei algumas penas rajadas do tão conhecido verde furta-cor. Aquelas pequenas amostras de Papagueno laceraram minha espectativa. Peguei-as com cuidado e pesar. Em seguida fiz uma pesquisa em profundidade, encontrando algumas outras próximas ao muro, untadas de um líquido escuro já seco e ligeiramente oleoso.
Por mais que caçasse os demais restos do pequeno Papagueno, nada mais vi, exceto os olhos gulosos do gato vizinho espreitando faiscantes por cima do muro. Raivosa, observei o ar petulante do gato, tão comumente mau humorado.
Matar o gato não podia, embora ímpetos sádicos corressem em arrepios pelo corpo. Limitei-me a enxotá-lo do muro.
Levei as penas para dentro, onde limpei e guardei ao lado da famigerada tela, para fitá-las toda vez que desviasse os olhos injetados, nutrindo de indubitável nostalgia.