29 outubro 2009

Unicamp 2007

...Com o auxílio de elementos presentes na coletânea, trabalhe sua narrativa a partir do seguinte recorte temático: Os meios de transporte sempre alimentaram o imaginário das pessoas em todas as fases da vida. Desde a infância, os brinquedos e jogos exprimem e estimulam esse imaginário
Instruções
1) Imagine a história de um(a) personagem que, na infância, era fascinado(a) por um brinquedo ou jogo representativo de um meio de transporte.
2) Narre a origem do encanto pelo brinquedo e o significado (positivo ou negativo) que esse encanto teve na vida adulto do(a) personagem.
3) Sua história pode ser narrada em primeira ou terceira pessoa.

Pois bem...

__O garoto se esgueirava para fora da cozinha alvoroçada segurando com firmeza contra si um pedaço amarrotado de papel e um de carvão, a enegrecer-lhe a mão e a camisola de linho cru. Como ninguém lhe prestou atenção, ele rumou para os fundos de uma pequena capela. Nessa área mais afastada do jardim, túmulos de mármore restavam onde o sol ainda não alcançara. Ervas daninhas cresciam por entre as lajes e insetos prenunciavam um dia de verão. O menino içou seu corpo diminuto para cima de uma das pedras e ficou ali sentado, ouvindo os sons da casa a se espreguiçar.
__Conforme o sol avançou, os raios iluminaram as pernas alvas do garoto, que agora se ocupava de examinar uma curiosa planta balouçante sob a brisa morna, cuja persistência desfazia suas flores em pequenos flocos brancos, fazendo-as flutuar no ligeiro vento.
__Ele apanhou o papel amarfanhado e, após uma alisada, pôs-se a desenhar a inédita planta. Percebeu neste momento que aquelas lindas partículas dançarinas lembravam-no de homenzinhos voadores, fazendo seu exótico baile no ar. Aquilo imediatamente o animou - imagine que lindo seria se os homens pudessem voar..! Com isso em mente, passou a rabiscar no verso homens alados - com asas de cera (como as de Ícaro), com asas de madeira, com asas de tecido...
__Feito isso, partiu pelos jardins em busca da tal planta. Um criado esbaforido deu por encontrá-lo no meio das flores, a rodopiá-las girando-lhes o caule, com olhos brilhantes de vivacidade e um sorriso espreitando-lhe os lábios.
__Para o estarrecimento de seu maestro, tanto naquele dia como nos vindouros, indagou-lhe minuciosamente sobre homens voadores. A pouca disposição do maestro, todavia, sepultou aos poucos suas confabulações.

__Estava em seu estúdio a procurar um antigo estudo seu de anatomia, a coçar a barba de quando em vez e a abrir baús, quando se deparou com alguns rabiscos. Já eram velhos, pois o papel rasgava em pontos diversos. Com um sorriso, reconheceu o seu traço juvenil e vislumbrou o rascunho de uma planta que sempre o recordava de Ícaro, de asas e de bailarinos celestes. Espiou mais alguns desenhos, mas as flores rodopiantes não lhe saíam da mente. Imaginou então um homem agarrado ao cabo de uma flor imensa que girava feito uma hélice. Seu sorriso se expandiu sutilmente. E se..?
__Leonardo deu as costas ao seu estudo perdido de anatomia e encostou a porta. Em seguida, o homem de Vinci sentou-se à mesa e apanhou um novo papel.

22 outubro 2009

Pessoa, Fernando.

Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.
Shitty little time.

15 outubro 2009

MinutoMetragem

Situações cinematográficas que acontecem por aí. Pequenas. Comuns ou exóticas. Elas existem, o tempo inteiro.
Obs.: Os personagens não têm necessariamente a ver comigo.


Teto de um ginásio de alumínio. Borrões vermelhos e brancos se deslocam pela superfície metálica. Sons de gritos, ecos, barulho de gente e bola correndo vão surgindo num crescendo até o volume habitual.

Voz em off (abafada) - P1: ...são essas pessoas que vão ser a elite da nossa sociedade em dez, quinze anos; a elite adepta ao PIG, como os pais, todos repugnantes. Eles vão estar basicamente iguais, com os mesmos planos mesquinhos para o fim de semana, com as mesmas brincadeiras. Estúpidas. Agressivas. Neofascistas...
Voz masculina se destaca da gritaria: Ô Bu(n)da!..

P1 se cala.

P1 (normal, não mais abafada), hesitante:
Buda..?

Imagem desce para os jogadores, ângulo da câmera como uma pessoa deitada na arquibancada. Risada em off (de P2).

P2 em off (rindo):
O quê? Buda?
P1 em off: Alguém falou Buda?

Câmera se movimenta e endireita.

P2 em off:
Deve ter sido Bunda.

Garoto gordo do time escorrega no piso molhado de suor e cai. Caçoam dele, do Bunda.

P1 em off:
Ah... (Silêncio. Câmera deita de novo e aponta para o teto) que calor...
Vozes vão esvanecendo e pálpebras vão se fechando enquanto P1 resmunga
P1 em off (abafada): Buda? Esses imbecis não sabem o que é Buda, devem achar que budismo hinduísmo fenshui é tudo a mesma coisa. Bando de ignorantes, os anabolizantes devem ter explodido os neurônios deles... digo, só deve ter sobrado o Tico e o Teco, com um mataburro entre eles...

09 outubro 2009

(Drummond)

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem
A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio
A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados
A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada
A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar
A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação
A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés
A bomba
faz week-end na Semana Santa
A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia
A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos
interplanetários
A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose,
de verborréia
A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa
A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais
A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba
A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai
A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera
A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro,
cobalto e ferro além da comparsaria
A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.
A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave
A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos
A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
saboreia a morte com marshmallow
A bomba
arrota impostura e prosopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado
A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo
A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel
A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris
A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos
de paz
A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas
A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger
velhos e criancinhas
A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
A bomba
vai à Lua, assovia e volta
A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação
em cadeia
A bomba
está abusando da glória de ser bomba
A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba
o instante inefável
A bomba
fede
A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina
A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.