24 novembro 2007

O garoto, A pomba e A pasta

Pouco se passara desde o toque longínquo do sinal do colégio. Lá estava ele, com sua pasta escolar dependurada frouxamente em um dos braços, uma mochila suja e os olhos redondos fitando com intensidade o dia iluminado de cinza.
Uma brisa fria corria por entre os troncos semi-nus, fazendo folhas mortas suspirarem ao serem deslocadas de seus metódicos montes.
Com as faces coradas e a respiração irregular, ele deambulava por entre as árvores. Sozinho, com sua pasta. Parecia cansado, cabisbaixo, embora encarasse o mundo com suas esferas cor de âmbar.
O parque estava deserto e os bancos disfarçados com o cenário. Ele semicerrou seus olhos de longas pestanas à procura de um. Ao sentar-se, notou uma pilha meio desfeita de folhas ao lado do banco. Depositou sua pasta e mochila a seu lado e recostou. Na extremidade de sua visão interpelavam-se automóveis guinchantes e volta e meia alguma buzina estridente. O garoto olhou de esguelha para a sua pasta. Hoje era o dia de entregar uma redação à professora. Ela estava ali, mas ele não queria entregá-la. Não era apenas a timidez, havia a sensação de não poder entregar aquilo, coisa que revirava em seu estômago e irradiava uma fraqueza em seu ventre. Também não conseguira escrever mais nada. A história de um jovem adolescente que morrera por overdose de heroína. Real demais, sua professora certamente contaria para sua mãe, e ele não queria vê-la triste.
Soprou um vento mais encorpado e uma espiral de folhas rodopiantes lançou-se contra suas costas cobertas por um suéter de lã. Ele praguejou baixinho, tentando retirar aquelas encarrapitadas no tecido, sem muito sucesso.
Uma cantiga assolou sua mente, uma cantiga sem letra, cantada por uma voz infantil chorosa. Dava-lhe certo desconforto, mas ela havia grudado em sua cabeça feito sanguessuga. Cantarolando com a voz suave e soprada dos mancebos, ele olhava alternadamente o parque e a pasta. O parque e a pasta. O parque e a pasta.
Numa dessas incursões ao parque que ele viu esparramada no chão uma minúscula silhueta cinzenta, tremendo feito uma grande colher de gelatina; o garoto, com os olhos cor de âmbar reluzindo de curiosidade e dúvida. Embaçado. Ele não conseguia identificar o que era aquilo.
Espiou no relógio. Eram nove e meia da manhã.
Ele pôs-se de pé. Andou, olhando para trás como para se certificar que a pasta não havia sumido. Embaçado. Enevoado. A silhueta cinza era um pássaro. Um filhote, constatou o garoto, ao agachar-se ao lado. Voltou seus olhos para cima, protegendo-os da luz com as mãos. Aquilo era um ninho? Ele não saberia dizer, estava tudo tão embaçado...
Seja como fosse, tinha caído. O frágil esqueleto havia desconjuntado e a asa parecia torcida em uma posição anti-anatômica, assim como uma de suas pernas. Suas penas estavam avermelhadas de terra e arrepiadas em diversas direções. Os olhinhos de contas da ave estavam vidrados em seu rosto e iam tornando-se opacos, sem o brilho daquela manhã nublada.
Os olhos de âmbar fitavam o cadáver ainda fresco com um misto de tristeza e espanto. Estavam dilatados, brilhantes.
Um rugido esganiçado de um freio arrancou-o do torpor e o fez retornar nervosamente para perto da pasta, largando o pássaro de olhos de contas na poeira avermelhada. O relógio riscado marcava dez e dez. Procurando nos bolsos de sua mochila, achou dinheiro suficiente para comprar um pão com manteiga. Estava com fome.
O garoto jogou a bolsa em suas costas e apanhou a pasta. Saiu andando, cantarolando aquela lúgubre cantiga sem palavras e com os olhos opacos da ave em vívida recordação.
Contornou o parque num passo ausente e distraído. Havia uma padaria do outro lado da rua, com doces e mulheres vestidas de cores claras e toucas no cabelo. Ele tornou à esquerda, no asfalto malhado de branco.
Os ouvidos, próximos aos tranqüilos olhos cor de âmbar ouviram guinchos ensandecidos, e um capô prateado atirou a pasta e o rosto tristonho para o alto.
Como uma boneca de trapos, o garoto caiu, com os seus olhos dourados arregalados de surpresa tingindo-se de escarlate.
Uma mulher gritou, ele ainda a ouviu. Começou a sentir sua suéter cheia de folhas ficando pegajosa e quente. Seu rosto tombou para um dos lados - ele não sabia mais dizer qual era. Ele começou a ver, gradativamente, por entre um nevoeiro vermelho, sua mão lívida contra o asfalto cor de chumbo. Tão escuro. Tão dolorido.
Uma pessoa endireitou seu rosto, com um ar de repugnância e misericórdia estampado no rosto.
O sangue ia se alastrando, a histeria aumentando. Mas ao garoto o volume dos gritos foi cedendo espaço à cantiga despalavrada e a parca imagem do céu e da pessoa recortada contra o mesmo foi confundindo-se com a recente lembrança das duas contas pretas presas acima do bico daquela ave, perdendo o brilho. Ele tentou tatear a sua volta, procurando a pasta, mas ela não estava mais ali.

16 novembro 2007

quantas?

quantas vezes vou escrever num papel qualquer, quantas vezes vou arquivar nesta gaveta ao lado, quantas vezes vou sonhar o inatingível, imaginar fantasias?
quantas vezes vou sorrir, quantas vezes vou sofrer, quantas vezes vou segurar na ponta da língua, a vontade estúpida e tapada de cantar, de dizer, de sumir..?
quantas vezes vou dizer que o esqueci?
quantas vezes vou deixá-lo passar (como o samba de chico) e quantas vou revivê-lo, como brasa em lareira?quantas vezes vou desejá-lo, quantas vezes descartá-lo, jogando sua imagem no canto esquecido e escuro?
por que não ficas lá de uma vez?
quantas vezes vou mostrar-lhe a porta? quantas vezes pedirei para ficar? quantas vezes vou segurá-lo e empurrá-lo, simultaneamente?
quantas vezes?

sei que tudo, todas essas dificuldades são problemas que moram aqui dentro (indica a cabeça, com o indicador). será que eu necessito de tanta atenção assim?

05 novembro 2007

Sonhei (Lenine)

Sonhei e fui, sinais de sim,
Amor sem fim
, céu de capim,
E eu olhando a vida olhar pra mim.

Sonhei e fui, mar de cristal,
Sol, água e sal, meu ancestral,
E eu tão singular me vi plural.

Sonhei e fui, num sonho à toa,
Uma leoa, água de Goa,
E eu rogando ao tempo: - Me perdoa
E eu rogando ao tempo: - Me perdoa

Sonhei pra mim, tanta paixão,
De grão em grão, verso e canção,
E eu tentando nunca ouvir em vão.

Sonhei, senti, sol na lagoa
Céu de Lisboa, nuvem que voa,
E um país maior que uma pessoa.

Sonhei e vim, mares de Espanha,
Terras estranhas, lendas tamanhas,
E eu subi sorrindo essa montanha.
E eu subi sorrindo essa montanha.

Sonhei, enfim, e vejo agora,
Beijo de Aurora, ventos lá fora,
E eu cantando a Deus e indo embora.
E eu cantando a Deus e indo embora.

faz tanto sentido...

01 novembro 2007


Escrevo? Deixo de escrever? Rasgo minha pele com as letras disformes que anseiam por sair? Imprimo-as no meu cérebro? Ouço-as soletradas pela brisa horrorosamente quente que varre estas três dimensões que eu consigo chamar de realidade? Leio-as nas irregularidades das folhas, entre movimentos nas periferias da vista? Cheiro-as como ao papel e a cola de algum livro aberto? Teclo-as com os meus dedos irrequietos que se estalam compulsivamente?

Não, não escrevo. É melhor deixá-las guardadas aqui dentro, esperando o tempo passar. Ele chega, sem dúvida, mas a que preço? Não fará bem dizer isso, e talvez só piore. Mas as palavras cutucam martelam gritam esperneiam feito crianças mimadas. Elas não gostam de ser reprimidas, isto é fato. Mas, penso, olhando para meu umbigo untado de suor e de novo para a tela fosforescente, latejante. Mas, de que servem as palavras se não forem ditas? Para que cargas d'água (e é exatamente o que eu necessito neste momento) elas servem?

Para comunicação foram feitas. Ego-mundo, mundo-Ego. Mas se o interlocutor não as quer ouvir, por que elas insistem em se multiplicar pela mente, feito erva-daninha? Elas não têm vida própria, ao menos não deveriam. São palavras. Objetos utilizados para comunicação. Ponto. Ponto. Ponto. (...) Antes fosse.

Ao imprimir tanto significado a elas, me sinto manipulada, não manipuladora de tais. É vertiginoso, e deveras desconfortável.
Nem tanto. O mundo não é feito de tantos conceitos extremos...?
Ego-palavra, palavra-Ego não é exceção.

ou É?