16 julho 2008

"O Dia da Criação"

"Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado." - Vinicius de Moraes


Sua boca parecia ter chupado o cabo de um guarda chuva pela noite adentro. Uma trilha escorrera vertiginosa sobre suas maçãs, deixando um rastro de pele ligeiramente mais rígida que a maciez costumeira. O pequeno urso estava espremido no seu abraço agoniado e fones de ouvido pendiam do lado do travesseiro, desligados pela espera; junto deles havia um celular ligado e aberto na agenda de contatos - a bateria dava seus últimos suspiros. A inevitável luminosidade diurna viera, plúmbea como as asas de uma pomba veneziana, plúmbea como o pesar que envolvia o quarto. O vento açoitava o vidro das janelas com o guincho estridente dos ramos depenados. Emergiu o corpo das cobertas e enfiou os pés em uma pantufa.
O espelho defronte a cama delatava uma face inchada de olhos injetados. A vida ainda continuava, naquela situação péssima. Os soluços entalados, os gemidos abafados, as melodias opressivas, o orgulho perante a quebra.
"Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado"
Era sábado, então. Havia a praça, a combinação, nem tudo estava perdido. Águas de alívio subiram aos olhos, ela as afastou com impaciência. Elas poderiam esperar um pouquinho mais, só até ela poder enfim desabar nos braços de Alguém. Espirrou. Fazia frio.
Ainda desfilavam diante de si aquelas lindas idealizações, desafiadoras. Os cabelos ruivos em profusão, as alturas contrárias, os erros perdoados, os maus entendidos resolvidos... e um final feliz. Observando o louro acinzentado do agora, do real, do palpável, ela via com os olhos transbordantes que reservara a si mesma algo que era de longe muito distante do que queria, ou fingia querer.
"Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado"
Lavou o rosto, retirando o sal seco de suas bochechas. Mudou a roupa e tomou o café mais rápido que conseguiria, desviando de seus pais o máximo possível. A saturação de lágrimas não saía da iminência do dilúvio, e assim ela saiu de casa, depois de dar um beijo úmido em seu urso e apanhar sua mochila.
Foi-se no ônibus verde, pegando conexão com outro e enfim descendo numa avenida arborizada. As coisas pareciam um pouco fora de órbita, mas ela aceitou isso como sua condição interior.
"Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado"
Chegou atrasada à praça, mas nada de Alguém. De prontidão, o líquido morno respingou das pálpebras pesadas, e retirando os óculos ela secou o rosto, com a manga. Vai que tem um Outro Alguém por aqui. Por uma das poucas vezes não queria vê-Lo, e prestativo como sempre, ele não estava lá. Se aproximou do lugar adotado como ponto de encontro. Nada de ninguém. A praça parecia meio morta, as barracas eram poucas, as pessoas, estranhas.
"Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado"
Mas era sábado. Isso era definitivamente estranho, não havia viv'alma ali! E cedo propriamente não era, já passava das onze e um terço... talvez estivessem dando uma volta; a praça era grande, afinal. Fez o círculo e parou de novo, no ponto de partida. E nada, de ninguém. Sequer um conhecido. As pessoas passavam por ela, enquanto ela os fitava, decepcionadamente perplexa. Onde estava todo mundo? O que acontecera com o ritual de sábado? Eram férias até, oras! Todas os fins de semana, todas as pessoas... nem mesmo o palhaço, o infernizador, não restava ninguem ali.
"Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado"
Ela se sentou num banco, onde tinha um visão perfeita da passagem, do mundo. O tempo era varrido pelo vento, deixando somente o frio e o desolamento. Nada de ninguém. Ela pegou o celular e ligou para Alguém, tentando conter a sensação de abandono, de estranhamento e de desalento em torrente. Precisava ouvir uma palavra tranquilizadora, uma garantia de que não estava realmente no lugar certo mas no lugar errado, que ainda conhecia alguém, que não estava sozinha. Caixa Postal. Menos calma, tentou a casa. Sem resposta.
"Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado"
O guarda olhou de relance, enquanto ela abraçava os joelhos e se esforçava ferrenhamente a não chorar tudo ali, de uma vez. O tempo passava e ela tornava a ligar, não aceitando que o mundo de repente sumira, no relance do espelho. Nada. Nada. Nada. Pensou num amigo que poderia estar trabalhando por ali e ligou, já em vias de desespero. Chamou uma eternidade e enfim alguém atendeu. Mas não era ele, era uma moça. 'Não, ele não está... foi para o colégio'
"...E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado"
Ela enfim se levantou, procurou mais um pouco, embora só surgissem na sua visão estranhos e mais estranhos. De olhos rasos desistiu e deixou a praça, lugar não mais tão seguro, tampouco acolhedor. As pessoas a encaravam com um misto de pena e diversão.
Sozinha, ela desceu as ruas, com a face novamente lavada. A sensação de ter estourado a bolha que envolvia seu mundo a deixava vagando ali, de olhos vermelhos, numa dimensão de seres insólitos.
"Porque hoje é sábado"

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