Depois da morte de meu avô, mudei-me para sua casa. Neto de filha única, e desesperado para sair da casa de minha mãe, convenci-a de não vender o imóvel vazio e me mudei. O pretexto era ótimo – era mais próximo da universidade.
A entrada foi menos triunfal do que planejara. A casa caía aos pedaços, em seu mudo sofrimento – ou nem tão mudo assim. Fechaduras, maçanetas, dobradiças, piso, escada, tudo gemia dolorosamente se tirado do seu coma catatônico. A casa tinha artrite, como tivera meu avô.
As primeiras medidas foram as emergenciais; hidráulica e elétrica entraram nos eixos, e então o dinheiro acabou. As parcas finanças de um pós-graduando não eram suficientes, e o descontentamento de minha mãe com a situação constrangia-me a não pedir dinheiro. Resolvi reformar o resto por conta e risco – mas o resto podia esperar. Fazer uma lavagem cerebral nas lembranças da casa era urgente. Comecei pela sala, subi as escadas – quartos, banheiro –, desci as escadas – cozinha, despensa. Por fim sobrou o vão da escada.
Meu avô costumava passar muito tempo por lá, mas desde que passara a morar sozinho não deixara mais ninguém entrar. Lembro-me de sua fúria no dia em que roubei-lhe as chaves para explorar aquele recanto proibido, que instigava minha curiosidade. O estalo alto da fechadura acordou-o do sono sesteiro; seus safanões me prostraram no chão, e, bufando, ele arrancou-me as chaves e sumiu de vista. Alguns dias mais tarde, tentei abrir com grampos e clips, mas a vida não é tão simples quanto as ficções (televisivas ou literárias) insistem em nos demonstrar – aliás, sequer conheci alguém que tivesse conseguido abrir fechaduras desse jeito. Seja como for, depois de algumas tentativas desisti, e acabei arrajando alguma outra coisa para me ocupar.
Aquela chave nunca mais vi, nem mesmo na minha minuciosa varredura pela casa. Para não estragar a porta tentando arrombá-la, passei quentes horas de uma manhã encarrapitado em um banquinho bambo, tentando desparafusar a maçaneta; os parafusos enferrujados deram-me muito trabalho, mas por fim foram retirados. Cansado da tarefa e desejoso de estimular um pouco mais aquela réstia de curiosidade infantil, não abri a porta – dirigi-me à cozinha, onde abri uma cerveja e deitei-me no chão gasto de cerâmica, para esfriar o corpo. Ali fiquei estatelado, ouvindo o vento roçando coisas e tentando identificar o que seriam – o bochorno era insuportável, provavelmente choveria mais tarde. Adormeci.
Acordei com a chuva. Uma brisa fresca entrava pela janela e o som era manso. Levantei-me, comi qualquer porcaria e fui desvendar o vão da escada. Puxei a porta pelo buraco deixado pela maçaneta – estava emperrada. Puxei-a com mais força – ouvi um barulho seco de madeira sofrendo. Parei; o propósito daquela manhã fora não estragar a porta. Enfiei a mão pelo buraco novamente, tentando distribuir melhor a força em uma área maior – a madeira gemeu e abriu, com um solavanco.
Espiei. Não havia nada à vista, alguns rastros de passos, já meio escondidos por novas camadas de poeira e poucas caixas fechadas, empilhadas em um canto. Peguei-as – eram leves, estavam vazias.
Vazias. E cheias de pó.
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